terça-feira, 16 de março de 2010

“A fé sem obras é morta” (Tg 2, 26)

A 10ª edição do Fórum Social Mundial foi mais um momento de profundo aprendizado e conscientização sobre a realidade social e política em que vivemos. Felizes e sábios foram aqueles que dele participaram. Como nos outros anos, o Fórum Social, apesar de ser um evento que reúne pensadores e ativistas de todo o planeta, é pouco ou simplesmente não divulgado pela mídia do nosso país (imprensa, rádio e televisão). É extremamente intrigante perceber como os acontecimentos mais insignificantes e privados roubam todo o espaço da mídia frente a um acontecimento mundial “inconveniente”: o que fizeram os atores globais na última semana, tudo o que for relacionado ao futebol, a turnê de uma banda de rock, promoções e venda de ingressos para shows na praia, culinária, moda, beleza, estética, festas, tudo isso tem prioridade sobre os temas de política, educação, ecologia, segurança, cultura, saúde, direitos e dignidade de vida. É uma pena...
Indiferente ao descaso da maioria dos meios de comunicação o Fórum Social Mundial aconteceu (de 25 a 29 de janeiro de 2010) novamente no Brasil, dessa vez descentralizado, ou seja, ele foi sediado em seis cidades do Rio Grande do Sul: Porto Alegre, Gravataí, Canoas, São Leopoldo, Novo Hamburgo e Sapiranga. Idealizado e mantido pelos membros dos Movimentos Sociais (Civis e Religiosos), o Fórum Social Mundial surpreende mais pela experiência de seus ativistas do que pela erudição de seus intelectuais. Os intelectuais funcionam como verdadeiros canhões de luz, que iluminam novos e longínquos horizontes em meio às trevas do descaso, comodismo e indiferença em que vivemos. Eles são como fermento na massa, mas o que realmente impressiona é a existência dessa massa, desse grupo de pessoas que não se conformam com as injustiças, com a miséria, a alienação, e lutam dia após dia por um mundo melhor, uma vida melhor e mais digna para si e seus semelhantes. A grande maioria das Mesas de conferência e debates do Fórum Social consistem na exposição e partilha de pessoas muito práticas, por vezes, sem formação acadêmica, mas com grande consciência política e social. É através da prática, das suas experiências que estes homens e mulheres vão aos poucos constituindo sua bagagem teórica.
E o que se trata num Fórum Social Mundial? Em primeiro lugar a questão da alienação, esta terrível doença que persiste cada vez mais forte ao longo dos séculos. Infelizmente, o ser humano com facilidade sucumbe a esta enfermidade, e com ela convive toda a sua vida, indiferente da condição social em que se encontre: os ricos simplesmente ignoram que a pobreza exista, e os pobres não conseguem imaginar que uma vida diferente, uma vida com dignidade possa existir também para eles. Não é a condição financeira que torna uma pessoa mais ou menos livre, mas a sua cultura. Segundo José Martí, “ser culto é a única forma de ser livre”, e cultura nesse caso corresponde a ser consciente, ser sujeito de sua vida e de seus atos. Como bem disse a senadora Marina Silva, no 4º Seminário de Políticas Sociais (uma das atividades do Fórum Social), tem muita “gente que continua querendo ficar na senzala”, que continua querendo ter um patrão, alguém que pense por ela, alguém que lhe “cuide” e administre.
A alienação funciona como um câncer de medula que atinge todos os outros sentimentos e percepções do ser humano. A pessoa alienada comporta-se com indiferença, descaso e impotência. Vivemos numa sociedade em que o outro, de modo especial, o sofrimento e as limitações do outro nos são indiferentes, não nos afetam e comovem. Até pode surgir uma leve comoção enquanto se toma conhecimento sobre uma circunstância de injustiça e sofrimento, mas ela perdura somente enquanto o fato é noticiado, comentado; logo em seguida saímos em busca de informações mais alegres...
Indiferentes aos problemas do mundo e do outro, os ser humano comporta-se usualmente com descaso e/ou impotência. As seguintes frases podem ser ouvidas ou deduzidas nos mais diversos ambientes: “Jogo lixo em qualquer lugar porque todo mundo joga. Olha só como estão as paradas de ônibus do nosso município? A prefeitura não se importa, ninguém se importa: não é o lixo que deixarei de jogar que fará alguma diferença.” / “Realmente, a cidade onde moro é bastante violenta, mas graças a Deus, minha casa é bem segura, tem grades, e além disso, à noite a minha quadra é monitorada por vigilância privada”. / “É o segundo dia consecutivo que saio cedo de casa, do interior do município, venho para este Posto de Saúde, e simplesmente, pelas 10h, umas das funcionárias avisa que o único médico(a) responsável pelo atendimento no dia não virá...” / “Ontem pela manhã tive que roçar um pequeno caminho no canteiro central da rodovia RS 240: o capim estava na altura da cintura”. / “Estou na parada há 01h e ainda não passou nenhum ônibus... Provavelmente retiraram mais este horário de circulação. Mas não havia nenhum cartaz nos ônibus avisando que isto aconteceria.”
Os exemplos bem bairristas de descaso, impotência e acomodação servem para mostrar como as pessoas se comportam diante de circunstâncias que lhes tocam diretamente. Imaginem o que acontece quando se trata de questões que envolvem o estado, o país, o continente, ou o planeta? Quanto mais abrangente for o problema, conflito, perigo, menor é o comprometimento de cada indivíduo: aquecimento global; ocupações militares efetivadas pelos Estados Unidos no Oriente Médio e nos países da América Latina; devastação e expropriação da Floresta Amazônica por países estrangeiros; instalação de empresas internacionais de captação de água na região do Aqüífero Guarani; instalação de empresas européias de produção de celulose em nosso país; as condições indignas em que vivem os povos indígenas; a criminalização dos movimentos sociais no Brasil; a tensão política e social em que vivem muitos países da América Latina, constantemente ameaçados por golpes de Estado, traficantes e ações paramilitares; enfim, todas essas questões são problemas “deles”, “dos outros”.
Apesar de tanta alienação, indiferença, descaso e impotência o Fórum Social Mundial persiste cada vez mais consciente de que “Um outro Mundo não só é possível, como extremamente necessário”. Como canta Pedro Munhoz: “Somos um, seremos mais, Lado a lado, em frente. Um mais um nunca é demais, É poesia, é gente.”
Joice Maria Falkoski - Nefipo Unisinos
Este artigo também foi publicado no Jornal Primeira Página, do município de Portão/RS, Edições Nº 1.044 e 1.045, dos dias 12 e 26 de fevereiro de 2010.

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